sábado, 7 de maio de 2011

Programas

   O rapaz calçou os chinelos e em um movimento veloz estalou o pescoço. As pontas dos dedos alçaram ao teto, tencionando os braços, esquentando os músculos contra a rigidez matinal. Escolheu na estante um disco, não de sons estridentes, mas que contivesse um certo tom de alegria e agitação, algo para acordar. O ribombar das primeiras pancadas da bateria, seguido de acordes ainda distantes da guitarra elétrica, equalizaram o cérebro do jovem em uma frequência mais ativa. Os cereais flutuaram no pote de leite. Embora o meio-dia avistasse seu ápice, o ainda jovial ser humano tinha a sensação de ter recém saído da noite. Preocupava lhe somente o horário do desejado programa televisivo. Estirou-se sob o sofá, o pote de cereais úmidos ao leite ainda em suas mãos; o controle remoto ativou um misturador de realidades. O televisor rugiu de forma incompreensiva por um milésimo de segundo até ser possível definir os primeiros sons.
   O jornal de intervalo periódico exibiu a chamada inicial, dando continuidade os resumos informativos.
   Um bebê na Rússia, de cujo a pele das pernas sobressaíam trechos do alcorão todas as sextas-feiras, estava recebendo milhares de visitas diárias de fiéis islâmicos, creditando-o como mensageiro divino da paz; debates de caráter liberal, referente a relações homoafetivas, espalhavam-se por todo o país; problemas econômicos no leste europeu, reflexo das adversidades climáticas que assolaram a sociedade rural local; contradições no anúncio da morte de terrorista procurado há anos; guerra civil provoca imigração em massa para país vizinho, tumultuando o governo quanto aos problemas ocasionados por esse êxodo; atriz americana encontrada morta em hotel, provavelmente vítima de suicídio.
   O rapaz ainda mastigava o cereal já amolecido pelo líquido. O polegar toca determinado comando do controle remoto e logo sua visão é fustigada por uma imagem completamente distinta da anterior, uma jovem anunciando a apresentação de mais um episódio da série infantil animada recém-estreada. O dedo toca novamente o controle. Publicidade referente a uma enorme rede de loja de móveis e eletrodomésticos. Novamente o polegar se movimenta, e relaxa ao pousar o controle remoto junto a si no estofado. Acabara de iniciar a série juvenil, repleta de efeitos especiais e personagens estereotipados. Temia ele pelo fim que o roteiro daria ao seu personagem predileto.
   Quanto ao bebê russo, os debates de teor sexual, a economia europeia, o fim de um terrorista, o recebimento de imigrantes, o suicídio da atriz, tudo isto era episódio repetido e que provavelmente seria reprisado na próxima temporada. Onde ele havia deixado mesmo o controle? O som ainda não estava numa altura de provocar emoções.

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