sábado, 9 de julho de 2011

Sobre os pés

   Os pés há tantos anos suportaram nosso peso, levando-nos de lá para cá, mexendo-se quando estávamos impacientes, repousando por um breve período na noite de descanso e, ainda lá, esticando-se e esfregando-se, quando não se chocavam com os reflexos de nossos pesadelos. Chegou o dia em que se rebelaram, gritaram primeiro para que o tornozelo os ouvisse, posteriormente as pernas, até que a notícia fosse repassada à cabeça, “demitimo-nos”. Neste dia, grande parte dos homens deixou de ir trabalhar, ligaram aos seus escritórios e disseram “não iremos hoje, pois nossos pés nos abandonaram” ou então aos médicos, “doutor, não posso andar”. A estes foi destinado a morbidez e o repouso, dedicarão à leitura e a escrita.
   Os mais agitados, no entanto, sendo os de maior velocidade tanto no correr quanto no pensar, logo criaram novos meios de se locomover. Os primeiros tentaram usar o fígado, mas este já suporta tantas funções metabolizadoras que poucas forças sobraram para desempenhar o papel de locomotor. O outro, achando-se por esperto, mas não sendo mais do que o próximo a quem descreveremos, selecionou um de seus rins para a tarefa, “tenho dois, um cumpre sua obrigação interna, o outro me ajuda no trânsito”, mas este logo desistiu, pois o rim, acostumado a filtrar toda matéria de sujeira, estando fora do corpo, fez o papel inverso, consumindo a poeira e a sujeira do chão e transitando-a para o interior do corpo, fazendo com que o rim interno tivesse de duplicar seu trabalho na hora de filtrar, agora não só a excreção e secreção interna, mas também a poluição externa que o seu irmão gêmeo trazia. Por algum tempo ele ainda suportou, até que este indivíduo caminhou por um pequeno atalho de pedras, estas o rim locomotor também as absorveu e logo se invalidou; o paciente questionou “mas por que ele parou, doutor?”, ao que este respondeu “pedra no rim”.
   Ao verdadeiro esperto, tão ágil na época em que os pés ainda se movimentavam, veio-lhe a ideia, inspirada pelos conhecidos que fracassaram ao usar dos demais órgãos para substituir os pés. Decidiu então por transformar a apêndice, esta que de nada serve ao corpo senão para a apendicite, e ordenou a ela, “locomova-me”. E assim funcionou bem, sem os problemas internos da já comentada apendicite, e exercendo bem sua nova função.
   No começo, a apêndice criou algumas dificuldades, talvez pelas gerações em que passara ociosa, sem funcionalidade alguma, e por esse motivo tenha ela também, às vezes, se rebelado ao restante do corpo e matado alguns tantos indivíduos por sua doença particular. Mas aos poucos ela esquentou suas células e criou alguns músculos, tornou-se mais resistente, logo já podia correr. Sua elasticidade a fez moldar-se de forma apropriada para o caminhar, o homem já não sentia mais falta de seus vaidosos pés; a humilde apêndice tornou-se cômoda até mesmo para os antigos sapatos e chinelos que seus senhores ainda estocavam nos armários.
   A novidade foi tão bem recebida que decidiram por renomear o órgão, agora já tão irreconhecível como apêndice e este nome já não lhe serviria mais, afinal de contas as apêndices dos livros deixariam de ser apêndices, pois o significado delas mudaria logo se ao órgão não fosse dado um novo nome.  Chamaram de “andador” por algum tempo, depois “caminhante”, mas estes apelidos de nada pareciam com um membro do corpo. Por ele pisar tão bem, chamaram de “pisante”, mas soava de forma terrível, “pedante” já possuía um significado muito egoísta, semelhante ao caráter dos rebeldes pés; e falando nos pés, estes desapareceram, nunca mais foram vistos e sua feição já era esquecida, seriam eles parecidos com os “pisantes”? Alguns saudosistas clamavam poemas sobre eles, os mais ricos fizeram filmes, os franceses elaboraram um documentário. A memória dos pés, por mais desacostumados que estavam as pessoas deles, foi reavivada. Em sua homenagem, decidiram os cientistas chamarem o novo órgão, antes conhecido por apêndice, de “pé”, para que este ganhasse um nome e aquele nunca fosse esquecido.
   Aconteceu que, após vários anos, a descrição dos dois foi confundida e sua história misturada, um se tornou o outro e os dois numa coisa só e o que fez o homem andar foram apenas os pés. Quanto aos antigos, aqueles que abandonaram seus cargos de tanta canseira, acredita-se que se disfarçaram entre os outros órgãos e, para que descansassem de suas décadas de serviço, assumiram a forma de apêndice, para que nenhuma função fossem obrigados a fazer. Ainda hoje alguns deles, revivendo as lembranças de sua escravidão, decidem-se por se vingar dos homens, e os atacam com apendicites.

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