sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Miséria

   Miserável, segundo Maquiavel, explicando através das origens de sua língua nativa, é termo que provém de miseri, da qual, ao contrário do emprego que lhe damos em nosso cotidiano, significa “os que se abstêm muito de usar o que possuem”.
   Em seu guia de instrução ao Príncipe, o autor direciona o sentido para o governante sustentador de grandes riquezas e poderio que deixa de utilizar grande parte dos seus bens para suas conquistas e desperdiça, ao contrário dos liberais, vitórias próximas pelo simples princípio de resguardar ou esquecer tudo o que possui.
   O termo miserável, a partir desta linha de pensamento, não designaria então o indivíduo que pouco ou nada tem e muito sofre de pobreza ou fome e que, tendo oportunidade de possuir, faria muito em sua vida; se torna, então, a nomeação daquele que, ao contrário do anterior, possui, mas deixa de fazer.
   Maquiavel não limita o “possuir”, deixando em aberto este poderio: seria esse porte o de dinheiro, o de armas, o de força, o de caráter, o de amigos, o de inteligência, o de capacidade e tudo da qual mais seríamos, nós, homens e mulheres, capazes de ter. Tendo, logo somos nós conhecedores disto; tornamo-nos assim, não por ingenuidade, culpados por negligência desta abstenção.
   Sabemos, pois, que os que pouco tem, muito guardam, para não perderem o que possuem. Seria, neste caso, maléfico adjetivar aqueles que deixam de utilizar o que portam por instinto óbvio de preservação. Para despistar esta vil classificação, o autor acentua claramente as condições para o miserável: “os que se abstêm MUITO”. Ora, aquele que guarda algo por tanto tempo, sem render frutos, mesmo que para si, este é miserável e deve, em seu contexto, ser taxado pelo que é. A capacidade de multiplicar os dons, sejam eles materiais ou naturais, é próprio do ser humano e fundamental para o crescimento intelectual, econômico e até mesmo espiritual de todos nós. Deixar de utilizar o que está em nossa mão é pecado contra a sociedade e, principalmente, contra si próprio.
   Mesmo que cartilha para poderosos, a citação d’O Príncipe é ordenança para qualquer classe econômica; que fique bem explícito que cito esta única passagem, independente do conteúdo em completo da obra, que é guia prático para a avareza e governança corrupta. Repito que retenho-me à definição dada por Maquiavel para o termo “miserável”. E, neste determinado trecho, a ocultação de qualquer palavra que indique bens materiais deixa claro que a miseri em questão pode (e deve) ser direcionada a qualquer mortal e suas faculdades particulares.
   Ora, se um pintor, talentoso e estudado, deixar de pintar, que valia há na sua capacidade? Ou um escritor que, por capricho, deixa de escrever, de que adiantou sua habilidade? Ou ainda o senhor, estando ele em tempo disponível e percebendo a necessidade de outrem em uma prestação de ajuda rápida, qual a razão deste coincidente encontro se o tal não ajudou o aflito? Ou nosso governo, tendo os meios e os lucros para melhorar este país, não viabilizam este projeto, para que foram os representantes eleitos? E se eu, com a capacidade, seja ela qual for, que possuo, não a utilizar em vida, de que me adiantou viver?
   Analisando, de forma fria e imparcial, encontramo-nos rodeados de miseráveis, sendo eu o primeiro deles. Corro, assim, para recuperar o tempo perdido e, em semelhança a fé, ou sendo ela mesma, esperanço numa melhora como humano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário