quinta-feira, 14 de outubro de 2010

JANUÁRIO DA AVENIDA [2]

   Januário, psicologicamente alheio ao calor, trajava sua típica jaqueta de couro gasto sobre a camisa amarelada, da qual fisicamente lhe outorgavam suor em excesso. O cigarro, anexo inseparável de seu corpo, consumia-se ao fim, como numa corrida em direção ao filtro. Suas rugas cresceram paralelas ao longo sorriso. Seu semblante velho tingiu-se de ironia.
   - Um velho na minha idade só pensa em duas coisas.
   Arremessou a bituca do cigarro na calçada empoeirada e expeliu, pela tosse, mais um pedaço do pulmão. Com o dorso da mão, limpou a saliva que escorria no canto da boca. Esfregou a mão na calça enquanto endireitava a coluna. Falava pela linguagem sonora e pelas gesticulações das mãos, costume adquirido nos antigos discursos de rua, quando esbravejava e erguia as mãos para ser compreendido.
   - Juventude e política. Ao contrário do que dizem, não pensamos em morte.
   Apunhalou o peito e limpou a garganta. Seus olhos, fundos e escuros, brilharam em malícia recém parida. Centenas de fatos lhe voltaram a mente, trazendo-lhe inveja pelo eu que já fora e o homem que poderia ter sido.
   - Já embati de frente com a morte muitas vezes para encará-la com medo agora. Quando moço, enfrentei milícias e lutei por este país!
   Seu semblante tornou-se novamente reflexivo e distante. A tonalidade bege de sua pele, em composição com o cabelo seboso, permitia ver nele o desgaste de um senhor despreocupado com sua higiene. Os dedos da mão esquerda cerraram-se enquanto os da direita pressionavam a calça na altura do joelho. Memórias complexas vinham-lhe à mente. Pretensões que ele, mesmo agora, procurava entender, sem êxito.
   - Queríamos restaurar a democracia. Mesmo hoje, acho política coisa difícil.

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