sábado, 16 de outubro de 2010

Reflexões de um doente [3]

   Sociedade era incapaz de definir por quanto tempo ficara estirado ao chão, sofrendo as dores da consumidora doença e regurgitando sangue na calçada. Desnutrido e desvairado, tremia compulsoriamente, inapto para pronunciar qualquer coisa, mesmo um pedido de ajuda.
   A Consciência, auto-proclamada antagonista, crítica e reformadora, esbravejou de súbito, iracunda. Inconformada com a decadência alcançada por Sociedade, pelo qual fora por muito tempo espectadora silenciosa, tomou posição ofensiva. Não sabia, porém, que nesta empreita haveria de encontrar o grupo Pluralismo Ideológico, facção conservadora e ímpia, habitante antigo da mente de Sociedade. Uma herança dos antepassados.
   Começaram a discutir.
   Não se tendo consciência das divisões do indivíduo, um pedestre que passasse ao lado de Sociedade o tomaria por um interno fugido do manicômio, que na abstinência dos fortes remédios passara a estender um monólogo auto-difamatório. A visão nauseante do homem sujo, doente e mentalmente perturbado afastara qualquer ser de aproximar-se dele. Enquanto a mente combatia a si mesmo, o corpo continuava a se consumir.
   A poça de sangue, cuja nascente era a boca de Sociedade, assomava sobre todo o contorno de sua cabeça. O cheiro de cadáver atraíra urubus que pairavam, vindos de longe, acima dos prédios. Seus olhos lacrimejavam, revirados e sem vida.
   Esforçando-se por levantar, agora de pálpebras fechadas e o rosto manchado por sangue seco, ele conseguiu se sentar, recostando-se na parede de um beco vazio. Após algum tempo ofegando profundamente, procurando sugar ar vital para que seu cérebro funcionasse melhor, começou a arrastar seu corpo até um canto escuro, longe do movimento da rua. Tentava ao máximo acalmar seus pensamentos. Aquietara-se.
   Fechou os olhos e limpou a mente. Viu-se naquele estado de iniciação à putrefação. Horrorizou-se ao notar em que ponto da desgraça humana chegara. A esquizofrenia o deixara por alguns instantes e, tomando por sábio, aproveitou este momento para infundir uma linha de raciocínio saudável.
   Era hora de decidir os preceitos certos para que Sociedade progredisse do seu estado decadente.

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