domingo, 6 de abril de 2014

Dor como efeito de progressão natural

   Uma dor, pode parecer banal pontuar, é uma dor não importa onde se manifeste. Diferencia-se em grau, mas não sejamos tão ávidos em lhe botar tipos. É uma dor e basta. Suas diferenciações são analíticas: dor do parto, dor da perda, dor do ferimento, dor de cabeça, dor da saudade. Mas basta aplicarmos uma forma básica, destas que se aprende a constituir logo no ensino fundamental, que constatamos a simplicidade de sua existência; dor é dor.
   Contestam os filósofos, os abstratistas, os religiosos, os utopistas; contestam a tudo! Que a dor do sentimento em hipótese alguma pode ser igualada a dor física pois possui origem distinta. Há que se concordar com tal afirmação, no entanto a dor não é classificada na sua origem, pois ela não é causa, é efeito. Se ela é efeito de coisas distintas, por que a simbolizamos com uma mesma palavra? Tem de existir algo em comum entre os já citados parto, perda, ferimento, cabeça, saudade, sentimento e físico. Ora, todos são coisas naturais, intrínsecas à vida. Ainda assim o conceito de dor virá em tom negativo, sinônimo de caos, de desvio do natural. Como algo natural à vida pode ter um efeito considerado de desordem?
   Uma dor de cabeça ou de estômago, por exemplo, significa que ocorre algo estranho em seu organismo, ou que há nele um agente externo que não lhe pertence ou que reações químicas, através de ação externa ou de combinações fatídicas internas, estão ocorrendo. Mas e a dor do parto? Ela acontece naturalmente, pertence-lhe, não demonstra nada mais que a normalidade. O parto é necessário à vida e não pode existir sem a dor; se o corpo da mulher geme, é porque sente a vinda da criança – mas não seria essa dor também uma característica de anormalidade, visto que o corpo da mulher tem de se esforçar além do que o habitual para trazer a criança para fora? A perda não teria a mesma característica, algo natural à vida mas que pontua um momento de transição esperadamente esporádico e portanto precisa se fazer marcado?
   Ou seja, a dor é tão comum ao homem quanto a felicidade. Está presente há tanto tempo quanto esta última, é-lhe essencial. Ela existe para que, demarcada, possamos nos lembrar temporalmente de fatos importantes: de um acidente, de uma doença, do nascimento do filho, da perda de uma pessoa querida. No entanto a dor não é tão somente de caráter pontualista. Nela está uma função imediata e a faz se impor no curso da vida como efeito. A dor é sensação e reação; a sensação do contato com uma causa inesperada e a reação física/sentimental que primeiro aparece e força o organismo/indivíduo a tomar de forma rápida (e muitas vezes impensada, mas isto por questões de segurança) alguma atitude com relação a esta causa. É este o caráter essencial da dor, informar-nos de uma atitude ou de um objeto que nos é estranho ou inesperado e nos obrigar a reagir perante tal evento. Não fosse a dor, deixaríamos que as causalidades destroçassem tudo a nossa volta e as doenças corroessem nosso organismo sem que nos déssemos conta ou, ainda que tomássemos ciência, não desejássemos resolver o problema ou nos livrarmos da causa. Sem a dor, acabaríamos conosco, permitiríamos que atitudes alheias destroçassem nossas vidas e nossos planos. Não fosse a dor, viveríamos doentes e não passaríamos de poucos anos de existência. A dor é que nos impele a reagir e prosseguir, por isso ela é tão vital e, mesmo virtualmente caótica, é de uma naturalidade das mais significativas.
   Não cabe nestas linhas discutir a relatividade da dor, se ela existe ou não e quais os parâmetros de distinção. Acredito ter feito de forma muito rápida aquilo que pretendia no começo, defender a ideia de que não há distinção de dor, apenas diferenças no seu grau (e talvez esteja nas diferenças de grau que a discussão da relatividade da dor deva ser iniciada).
   Dor é dor, e dói em todo ser que se diz humano.



“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.”

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Porto de Mariel: o presente que o Brasil não comprou

   Eu venho me abstendo de falar qualquer coisa sobre o apoio do governo brasileiro à construção do Porto de Mariel (Cuba) por vários motivos: não está entre minhas leituras mais dedicadas os estudos de política econômica; o mesmo sobre política externa; atacar obras do Partido dos Trabalhadores, hoje em dia, é ser taxado de "colaborador da direita" neste país; apoiar o Partido dos Trabalhadores é ser taxado de "petralha-comuna-golpista" ou "lulista-dilmista"; e por fim, apoiar um projeto Cubano é ser comunista cego que apoia um regime que deixa sua população pobre e faminta. No que que diz respeito aos dois primeiros pontos, fica claro que minha ponderação quanto ao assunto está sujeita a contra-argumentação de quem se aprofunda mais no assunto; quanto aos três últimos, nada mais são que acusações sentimentais, com a pouca argumentação que carrega ser infundada e que não levam como objetivo, em qualquer situação, uma consideração real do projeto, seus verdadeiros impactos e/ou benefícios - não deveriam, portanto, limitar a exposição de uma ideia mais crítica e programática dos fatos.
   Pus-me a escrever mais pela incômoda falta de informação que circulava na internet a respeito do caso, reduzindo-se em sua maioria a uma imagem da presidente Dilma dando "adeus" a milhões de reais dos cofres públicos num projeto cubano. Mas, ora essa! Em meio a tantos protestos, a insatisfação com os gastos nos estádios de futebol, ao descaso da saúde pública, centenas de milhões de reais num porto que nem no Brasil é? Motivo para impeachment! Ou não...
   No interessante Introdução ao estudo do método de Marx, José Paulo Netto nos dá formatos de estudo no mínimo aproveitáveis ao se deparar com qualquer objeto não (completamente) compreendido. "O objetivo(...), indo além da aparência(...) é apreender a essência do objeto(...). Numa palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto" ¹. A partir dessa diminuta regra básica, a pergunta que se faz é: por que perder tanto dinheiro assim?
   Tudo começa a se esclarecer com a palavra financiamento (e a partir daqui peço licença para arredondar os valores apresentados - para números mais preciso, sugiro uma visita ao site http://www.brasil.gov.br/infraestrutura) . Aproximadamente R$700 milhões seria o valor que nosso país está dando ao governo de Cuba, se a expressão "financiamento pelo BNDES" significasse a remoção de reais do orçamento da União para serem entregues sem garantia de retorno do valor para o banco. Ou será que o pequeno empresário que financia a aquisição de uma máquina para sua empresa pelo BNDES também está recebendo uma doação do governo brasileiro para lucro próprio? Ao que entendo, e é bom reafirmar que economia não é o meu forte, este valor deve ser pago de volta parceladamente ao Banco com seus devidos juros. Pelo que entendo, também, o Bradesco não sai por aí dando dinheiro às pessoas (muito embora receba vários calotes - não que lhes faça falta, visto o valor que os bancos privados sugam dos cidadãos e da corrosão interna que tais instituições fazem em nossa sociedade). E aí está a falácia do discurso meramente anti-petista (novamente, um discurso sem crítica ao programa ou aos seus benefícios, mas o pobre jogo de intrigas): Cuba constrói um porto com custo aproximado de R$1 bilhão e faz um empréstimo bancário de R$700 milhões com o BNDES, a ser pago em prazo estipulado e juros. Veja só, temos aqui um dinheiro que não seria aplicado na saúde, na educação, na habitação, pois é um crédito bancário (essa anomalia que sustenta a economia do mundo hoje em dia - um dinheiro que não existe mas circula flexivelmente por aí) e minha explicação às taxas de juros, limites de empréstimos e círculo de reais que o BNDES pode oferecer param por aqui e para se ir adiante precisaríamos de um especialista. O importante para tirar a primeira venda do caso está feita: o Brasil não escoou nas águas do Atlântico Norte milhões de reais!
   E se a Alemanha ou a Suíça adquirissem a mesma dívida com o governo, seria motivo para tanto alarde? Utópico, ainda mais com a casa do Euro repousando em Berlim - mas talvez Portugal ou Espanha, mesmo atacados por uma crise, teríamos a mesma agressividade ou sequer um receio de não reaver o dinheiro?
   Até aqui poderíamos ter imaginado mesmo sem qualquer pesquisa e foi justamente a pesquisa que trouxe à tona uma informação surpreendente! E esta eu não vi circulando nas artes com rostinho da presidente.
   Imagine que você vá fazer um empréstimo no banco. O gerente olha sua ficha, dá uma analisada na sua movimentação, olha para o seu rosto e te diz: "tudo bem, a gente te libera o dinheiro, mas pra isso você vai ter que usar essa grana somente para comprar coisas na rede de lojas da minha família - e assine aqui esse contrato de que você vai fazer isso". O governo brasileiro fez praticamente a mesma coisa; para que o crédito fosse aprovado, era necessário que Cuba concordasse em gastar pelo menos R$800 milhões, do total de R$1 bilhão do projeto, em produtos e serviços do Brasil! Cem milhões a mais do que o financiamento feito pelo BNDES e 80% do valor total da obra. Ou seja, o banco liberará um crédito (que, simplificando, é quase um dinheiro fictício - mas qual dinheiro não é nesse século XXI?) e ele deve retornar inteiramente e mais uma parte dentro da economia brasileira através da aquisição de mão de obra e material. Ora essa, não bastasse o valor ter que ser pago novamente em juros ao Banco de Desenvolvimento do Brasil (provavelmente num longo período, visando o tempo em que o porto dará retorno financeiro), esse montante virá com um acréscimo em forma de transações comerciais; o que implica, obviamente, pagamento de impostos da qual as porcentagens já preestabelecidas serão direcionadas à saúde, educação, habitação, etc. A insuficiência dessa administração de impostos para as necessidades é assunto para outro debate.
   Está ficando bem longe da frase "Dilma constrói porto em Cuba", não? Daí, acrescentemos um pouco de política externa sem gastar muito tempo: a América Latina deveria, há muito tempo, e como muitos já tentaram, estar se unindo cada vez mais no sentido econômico, político e comercial. Somos uma região muito rica e de grande potencial para crescimento, mas fragmentamo-nos em divisões e discussões que segmentam e enfraquecem o poder estrutural que esta região possui, fortalecendo o mercado exterior europeu ou norte-americano. Desde as divisões coloniais até os sucessivos golpes de apoio imperialista-estadunidense, temos visto as tentativas do fortalecimento latino-americano retrocederem no que conquistamos, retardando cada vez mais tal união. Um porto como o de Mariel trará benefícios comerciais e de logística para o mercado do Sul, e assim esperamos que se suceda.
   Então a obra é 100% benéfica?
   Voltando ao processo metodológico de estudo esmiuçado por José Paulo Netto, digamos que estamos a meio caminho de descobrir isso. Qualquer projeto de grande escala no Brasil hoje está ligado a empresas de um poderio gigantesco e de um desvínculo com o interesse público que afeta nosso cotidiano desde sempre. Seja a querida e sempre favorecida Odebretch (que está envolvida no Porto de Mariel) ou a protegida OGX, trazida a vida quando beira o infarto, há alguém lucrando (e não é pouco) sobre os serviço públicos brasileiros. E este é um mal em escala mundial, mas que teve uma sombra de "dias contados" no Brasil quando o radical PT ameaçou chegar ao governo com mudanças. Pelo jeito, as empreiteiras viram que cão que muito ladra não morde.
   O Porto de Mariel em Cuba com certeza não é o projeto que mudará o Brasil, que construirá hospitais, que expulsará a FIFA (que tanto clamam pra ir embora) e tornará o Brasil independente do capital burguês. Mas engana-se quem diz que o dinheiro público está sendo dado de mão beijada a um falecido governo comunista que já deveria ter se entregue ao século XXI, globalizado e capitalista. Engana-se, não; desconhece! É por este discurso terrorista, uma briga polarizada que o cidadão brasileiro compra sem perceber que perpetua governos tão similares, que vamos nos arrastando no desenvolvimento e no trabalho de diminuição da desigualdade social. Bom seria que todo empreendimento tivesse a atenção crítica da população, mas que se afastasse do peessedebismo vociferante e do lulo-petismo fanático. Nesse papo, onde fica um projeto para o Brasil de brasileiros?

 ¹ - Introdução ao estudo do método de Marx, José Paulo Netto - Editora Expressão Popular

sábado, 29 de junho de 2013

Criatividade Nula

   A vida artística de Bento aflorara, as entranhas do eu-poético remexendo no interior de sua mente. O orgasmo artístico que nunca chegava causava-lhe arrepios constantes, promessas de um futuro glorioso e enriquecido. Aos vinte e cinco anos se projetava como um gênio que deveria ser reconhecido. Decidira numa tarde ensolarada e úmida escrever algo.
   Avisou à família e aos amigos, como costumava fazer sempre que podia, que iria ficar recluso em seu quarto para escrever e estava restritamente proibido perturbá-lo. Ao final, perderia mais tempo salpicando em páginas da internet ou nas atualizações de redes sociais do que exercitando o ócio criativo numa partida de paciência ou fitando um documento do Word em branco. A despeito disso, realmente sentou na escrivaninha e ligou o computador. Fitou a página em branco, mas não tinha capacidade para escrever nada; esperava uma epifania, a inspiração da musa grega para que as palavras rolassem por seus dedos. Não queria ele ser um escritor famoso pelo labor da arte de criar e organizar pensamentos, achava que era um escolhido de Deus para transcrever as palavras divinas do romance clássico que marcariam toda uma geração.
   Sem que recebesse inspiração mítica, decidiu por apelar ao lado calculista e metódico; decidiu escrever sobre o problema pelo qual enfrentava naquele exato momento. Isso seria algo novo! Algo inédito!
   A página em branco ganhou letras. Escreveu seiscentas palavras sobre um escritor que passava por um bloqueio criativo, as dificuldades de alguém que está seco de ideias. Achou inovador!
   Como se fosse tão passageiro o problema pelo qual Bento passava.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Clube dos Óculos


   Em uma mesa redonda estão sentados, nesta ordem, Woody Allen, Isaac Asimov, José Saramago, Stanley Kubrick e John Lennon. Há papéis, copos e garrafas de água, vinho e refrigerante pela mesa. Woody Allen batuca nervosamente o dedo no tampo, Asimov escreve incessantemente numa pilha de folhas, Kubrick derrama calculadamente vinho em seu copo, John Lennon está entretido com o cigarro na boca cantarolando enquanto Saramago cochila. Com exceção do murmurar de Lennon e do batuque do Allen, tudo está em silêncio. Uma placa pendurada em cima da porta diz “Liga dos Óculos”.
   Asimov – Estão esperando a quem? Podem iniciar a reunião!
   Saramago (ainda na posição de cochilo, os olhos fechados) – Ora pois, estamos a esperar por ti. Que quer que façámos, iríamos atrapalhar-te.
   Asimov – Mas não atrapalham. Posso muito bem continuar enquanto discutimos o assunto.
   Woody Allen – Precisamente! E vamos continuar, que já cansei de escutar o ruído desse lápis. Afinal de contas, o que tanto é que você escreve aí que não para nunca? A continuação do Velho Testamento?
   Asimov – O livro de regras da Liga, o que mais? É necessário a ordem e a decência em prol do futuro de nosso grupo.
   (Allen puxa rapidamente a folha em que Asimov escrevia)
   Allen – “Somente em caso de deterioração do solo terráqueo ou baixa qualidade do ar em todo o globo, impossibilitando a manutenção da vida na Terra, é que fica permitido a sede da Liga dos Óculos ser transferida para uma estação espacial ou colônia extraterrestre, ficando a priori o local mais próximo do nosso planeta natal”. Mas que baboseira é essa? Deveríamos estar preocupados com nossa aparência, pelo menos. Quem é que levaria a sério um clube de homens esquisitos com óculos gigantes na cara? Menos ainda se lessem isso. É terrível!
   Lennon – Acalmem-se, acalmem-se. Imagine que não há limites espaciais, não haveria preocupação com nossa sede. O Universo é nosso lar! Lutaremos pelo bem do nosso planeta, é claro. Mas onde exista a voz de um homem gritando pela paz, lá haverá uma humanidade a ser guiada.
   Allen – Vamos deixar o transcendentalismo, John. Atenha-se a estas regras sem sentido!
   Saramago – Claro está que devemos prezar pelas regras primárias, passemos depois as secundárias e, quanto às terciárias, que fiquem numa próxima pauta que essa demora já se prolonga muito.
   (Kubrick reclama de algo consigo mesmo e devolve um tanto de gotas do vinho que estava no seu copo de volta para a garrafa. Olha para o copo do Saramago, que continuava com os olhos fechados, e o enche pela metade, contando milimetricamente)
   Asimov (tomando de volta o papel da mão de Woody Allen) – Quem pediu para que eu escrevesse as regras foram vocês mesmos, em votação quase unânime. E levará mais um tempo para termina-lo, ainda estou na página quinhentos e quarenta e sete.
   Allen – Pelo rabino! Ele está escrevendo as condições químicas e físicas de cada membro, é a única explicação! Por que demos a ele o cargo de regrista?
   Asimov – Esse cargo não existe, muito menos o termo.
   Saramago (todos achavam que ele já havia caído no sono profundo e se assustam ao ouvi-lo) – Não estranhe a palavra desusada, caro Asimov, há reuniões como esta em que as comuns não apetecem.
   Lennon – Se não me engano, era o Stanley quem estava escrevendo antes. Eu bem que disse, para vivermos em compartilhamento mútuo não deveria haver um livro de regras. Só cria-lo já causa problemas.
   Allen (escondendo o rosto entre as mãos) – Ah, sim... O Kubrick!
   Lennon – Que aconteceu? Não lembro de desarmonia naquela reunião.
   Allen – Como não?
   Saramago – Pois o homem se pôs a escrever a mesma página todos os dias e fazia-nos ouvir as mudanças a cada reunião e sempre achava ali um erro que devia ser concertado. Sabe-se lá quantas vezes ele reescreveu o mesmo parágrafo como se fossem os takes ruins que ele vê repetidamente quando fecha bem os olhos.
   Asimov – Naquele passo de elefante, não chegaríamos a lugar algum.
   Saramago – Muito menos à corte.
   Allen – Nem por isso vai inventar de fazer tantas páginas como se escrevesse uma enciclopédia galáctica – ou copiasse toda a Wikipédia.
   Lennon – Imagine quando este livro estiver pronto!
   Allen – Não quero nem imaginar, John.
   Saramago – Encerraremos a reunião por aqui, ou ao menos eu parto, que Pilar já vem me buscar para irmos ao médico. Pilar? Pilar? Pilar? (e Saramago sai da sala chamando pelo nome)
   Allen – Excelente! O que vamos fazer agora... Pare de encher e esvaziar esse copos!!!
   Kubrick ( para, encara Woody Allen, olha de novo para os copos, derrama as últimas gotas e os deixa quietos na mesa) – Existe alguma regra, destas que estão prontas, quanto a saída de um membro?
    Asimov – Sim, sim. Na seção dezessete, capítulo três, no terceiro parágrafo há dez leis quanto ao processo de uma reunião já iniciada que tem de se encerrar por eventos diversos. O sétimo se refere à saída de um dos membros, o que impossibilita a reunião de ser concluída, já que a quantidade de participantes no início da pauta não é a mesma do final. Sendo assim, temos que encerrar o encontro e finalizar a discussão na próxima reunião e isso desde que os mesmos membros que iniciaram esta estejam naquela.
   Allen – Cristo! Eu poderia estar em Paris agora, como fui me meter nesse clube de loucos. Enfim, o que quer que funcione, está valendo...

terça-feira, 26 de junho de 2012

Medicina Subjetiva


   Lá estou jogado no hospital, esparramado numa cadeira de rodas gelada, encostado num canto qualquer de um corredor gelado às três horas de uma madrugada gelada. A tremedeira incontrolável do meu corpo denunciava algo errado em mim, caso não fosse convincente a transcrição das sessões de vômitos e falta de ar nas últimas seis horas.
   Não haveria possibilidade de ter chegado ao local por conta própria; fui acudido por um primo que me deixou entregue ao excelente trabalho profissional médico da cidade (palmas a eles) e impedido de ser acompanhado, pelo irmão, que fosse – maior de dezoito vai desacompanhado, mesmo que não consiga andar e não haja nenhum enfermeiro para a assistência.
   O primeiro assistente a aparecer, longos minutos após minha entrada, questionou:
   — Houve uso de drogas?
   — Não – a resposta soltou-se naturalmente entre o sôfrego respirar.
   — De nenhum tipo? Ou bebida alcoólica?
   A mesma resposta, sem forças para ser detalhada. O médico responsável chega com o formulário.
   — Falta de ar e fraqueza?
    Assenti.
   — Houve uso de drogas ou bebida?
   Neguei. Interessante como, quando se consente, a necessidade de confirmação se ausenta. No caso da negação, a dúvida impera.
   — Tem certeza? Nenhum tóxico ou fumo? Ou bebida alcoólica, energética?
   Reafirmei, no caso re-neguei (desculpe o traço, sem ele o sentido da palavra poderia ser mal compreendido). Não obstante ao óbvio – um jovem de vinte e tantos anos, sem ar, sem forças para andar e tremendo tem a predefinição de estar drogado – ele avançou ao próximo estágio de doença moderna disseminada:
   — Está nervoso? – não doutor, estou contentíssimo em passar mal e me entregar aos seus cautelosos cuidados; não tinha forças para responder desta forma, esperei que ele disparasse a próxima pergunta – Está sofrendo algum tipo de pressão, momentos de stress? Está passando por dificuldades? Anda ansioso?
   De primeira, esbocei meu não com o balançar horizontal da cabeça. Para não mudar o padrão, ele repetiu as perguntas – nervoso?, problemas?, stress?, ansioso?, expectativas?, impaciente? – o que me levou a uma rápida reflexão e uma conclusão clara: sim, eu estava! Um milagre, o médico tirou do meu interior a resposta para os problemas.
   — Sim, talvez um pouco – respondi exausto pelas apunhaladas que o meu metabolismo vinha me aplicando naquelas horas. Ora, me diga você, quem não sofre destes males? Quem não possui um problema sequer, não mantém uma gota de ansiosidade? Alguém sem desejos, é provável, sem expectativas. Que pergunta a do doutor! Deveria ter pulado, o rapaz chegou tenso e debilitado, não é drogas, marca no papel “é o mal do século” que já se resume tudo!
   O resto é padrão. Aplicou o soro, esqueceu-me lá e foi dormir até que dessem conta, um par de horas depois, que eu ainda estava tombado num canto. Acordaram o profissional, assinou a ficha e me dispensou. Só por curiosidade, antes de lhe entregar a ficha para a liberação, dei uma conferida no “prontuário”. Havia lá o campo dos problemas, preenchido pela meticulosa letra médica: problemas familiares! Sim, fui até o hospital de madrugada, soltei-me numa cadeira para debilitados e esperei o castigo da ineficiência do sistema médico municipal simplesmente para limpar de minhas veias, com o miraculoso soro, os meus terríveis problemas familiares, estes das quais não sabia que possuía até ler o tal formulário.
   Pelo menos me vi salvo das estatísticas de mortalidade dentro dos hospitais por erro médico. Sou um vitorioso, ao final das contas! Devia é estar agradecendo a campanha bem-sucedida da equipe plantonista.
   O erro, no caso, foi meu por ter comentado muito baixo e uma única vez para a moça que me recebeu na porta do hospital que provavelmente havia pegado uma virose. Ora, havia até me esquecido que no dia anterior sentei à mesa ao lado de quatro outros indivíduos que estavam infeccionados. Não posso negar que eu estava ansioso, o que deve contar mais do que um vírus nestas ocasiões.

sábado, 9 de julho de 2011

Sobre os pés

   Os pés há tantos anos suportaram nosso peso, levando-nos de lá para cá, mexendo-se quando estávamos impacientes, repousando por um breve período na noite de descanso e, ainda lá, esticando-se e esfregando-se, quando não se chocavam com os reflexos de nossos pesadelos. Chegou o dia em que se rebelaram, gritaram primeiro para que o tornozelo os ouvisse, posteriormente as pernas, até que a notícia fosse repassada à cabeça, “demitimo-nos”. Neste dia, grande parte dos homens deixou de ir trabalhar, ligaram aos seus escritórios e disseram “não iremos hoje, pois nossos pés nos abandonaram” ou então aos médicos, “doutor, não posso andar”. A estes foi destinado a morbidez e o repouso, dedicarão à leitura e a escrita.
   Os mais agitados, no entanto, sendo os de maior velocidade tanto no correr quanto no pensar, logo criaram novos meios de se locomover. Os primeiros tentaram usar o fígado, mas este já suporta tantas funções metabolizadoras que poucas forças sobraram para desempenhar o papel de locomotor. O outro, achando-se por esperto, mas não sendo mais do que o próximo a quem descreveremos, selecionou um de seus rins para a tarefa, “tenho dois, um cumpre sua obrigação interna, o outro me ajuda no trânsito”, mas este logo desistiu, pois o rim, acostumado a filtrar toda matéria de sujeira, estando fora do corpo, fez o papel inverso, consumindo a poeira e a sujeira do chão e transitando-a para o interior do corpo, fazendo com que o rim interno tivesse de duplicar seu trabalho na hora de filtrar, agora não só a excreção e secreção interna, mas também a poluição externa que o seu irmão gêmeo trazia. Por algum tempo ele ainda suportou, até que este indivíduo caminhou por um pequeno atalho de pedras, estas o rim locomotor também as absorveu e logo se invalidou; o paciente questionou “mas por que ele parou, doutor?”, ao que este respondeu “pedra no rim”.
   Ao verdadeiro esperto, tão ágil na época em que os pés ainda se movimentavam, veio-lhe a ideia, inspirada pelos conhecidos que fracassaram ao usar dos demais órgãos para substituir os pés. Decidiu então por transformar a apêndice, esta que de nada serve ao corpo senão para a apendicite, e ordenou a ela, “locomova-me”. E assim funcionou bem, sem os problemas internos da já comentada apendicite, e exercendo bem sua nova função.
   No começo, a apêndice criou algumas dificuldades, talvez pelas gerações em que passara ociosa, sem funcionalidade alguma, e por esse motivo tenha ela também, às vezes, se rebelado ao restante do corpo e matado alguns tantos indivíduos por sua doença particular. Mas aos poucos ela esquentou suas células e criou alguns músculos, tornou-se mais resistente, logo já podia correr. Sua elasticidade a fez moldar-se de forma apropriada para o caminhar, o homem já não sentia mais falta de seus vaidosos pés; a humilde apêndice tornou-se cômoda até mesmo para os antigos sapatos e chinelos que seus senhores ainda estocavam nos armários.
   A novidade foi tão bem recebida que decidiram por renomear o órgão, agora já tão irreconhecível como apêndice e este nome já não lhe serviria mais, afinal de contas as apêndices dos livros deixariam de ser apêndices, pois o significado delas mudaria logo se ao órgão não fosse dado um novo nome.  Chamaram de “andador” por algum tempo, depois “caminhante”, mas estes apelidos de nada pareciam com um membro do corpo. Por ele pisar tão bem, chamaram de “pisante”, mas soava de forma terrível, “pedante” já possuía um significado muito egoísta, semelhante ao caráter dos rebeldes pés; e falando nos pés, estes desapareceram, nunca mais foram vistos e sua feição já era esquecida, seriam eles parecidos com os “pisantes”? Alguns saudosistas clamavam poemas sobre eles, os mais ricos fizeram filmes, os franceses elaboraram um documentário. A memória dos pés, por mais desacostumados que estavam as pessoas deles, foi reavivada. Em sua homenagem, decidiram os cientistas chamarem o novo órgão, antes conhecido por apêndice, de “pé”, para que este ganhasse um nome e aquele nunca fosse esquecido.
   Aconteceu que, após vários anos, a descrição dos dois foi confundida e sua história misturada, um se tornou o outro e os dois numa coisa só e o que fez o homem andar foram apenas os pés. Quanto aos antigos, aqueles que abandonaram seus cargos de tanta canseira, acredita-se que se disfarçaram entre os outros órgãos e, para que descansassem de suas décadas de serviço, assumiram a forma de apêndice, para que nenhuma função fossem obrigados a fazer. Ainda hoje alguns deles, revivendo as lembranças de sua escravidão, decidem-se por se vingar dos homens, e os atacam com apendicites.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Madeira conta algo

   Teve esse caso no pub. Nunca fui de frequentar este tipo de lugar, sempre dei preferência aos restaurantes e fast foods, algo mais rápido e movimentado onde eu pudesse gastar uma hora inteira conversando com uma garota e apontando características peculiares das pessoas que entravam; nada de bares caros em ambientes fechados e música quase ao mesmo nível da nossa conversa, pouca luminosidade, bandas da casa extravagantes. Mas a garota me chamou, disse que sabia de um lugar bacana, alguns cantores conhecidos passaram por lá, o ambiente era legal e eles serviam bandejas de nachos sensacionais. Não foi tão ruim, a comida era boa e a banda da noite não pôde tocar, ou seja, só tinha aquela música ambiente comum. A noite foi normal, nada que mereça ser lembrado, ou é o que dizemos quando não queremos comentar a quantidade de assuntos que pode acontecer entre um casal em um lugar público. Mas tinha um cara bêbado, quase ao ponto de cair, perto do balcão do bar, falando sozinho e muito alto. Chamou a atenção do pessoal por lá e foi só isso, logo ele saiu escorado em um amigo e partiu para sabe-se lá onde.
   Aí fiquei pensando, “o que passava na cabeça desse rapaz?”. Era um lugar caro, um ambiente de pessoas que supostamente têm algum conhecimento, apreciam música e filmes, tocam algum instrumento. Por que gastar tanto dinheiro nessa inutilidade e perder a oportunidade de ter uma conversa com alguma moça bonita ou um novo escritor? Não teria ele casa para desmaiar por lá? Eu falei para a garota que me acompanhava, “Você beberia desse jeito, digo, pra ser notada pelos outros e carregada por um conhecido pra casa?”. Certas perguntas se fazem inúteis, a gente só diz para iniciar uma discussão ou algo do tipo, não espera realmente uma resposta complexa, talvez esteja, como nesse caso, preparado para uma risada e uma negação simples e a partir de então começar a caçoar do indivíduo e relembrar casos semelhantes ocorridos com alguém. Eu nunca tinha saído com a tal moça antes, não podia saber o que ela fazia da vida e o que quer que tenha passado! Conversamos durante toda a degustação dos nachos sobre bandas de folk e rock, comentamos algo sobre literatura, mas nos concentramos mesmo em cinema e sobre as expectativas da próxima temporada de filmes hollywoodianos. Eu não sabia simplesmente nada da vida desta tal, que não convém dar, como se diz, nome aos bois, caso ela ou algum conhecido seu venha a ler esta página. Não que ela não saberá que falo dela, pois isso é impossível; obviamente ela associará o lugar e o caso a mim e isso será inevitável, mas dessa forma posso poupá-la de algum constrangimento.
   Foi uma pergunta simples, como disse; não queria uma resposta real, apenas um comentário. Ela olhou bem firme nos meus olhos, as sobrancelhas tão cravadas no rosto que pareciam que iriam se chocar acima do nariz, tornou o rosto ao chão e com a feição fechada disse de uma forma arrastada “saí da clínica de reabilitação há pouco tempo. Tenho passado esses dias todos pensando justamente se eu conseguiria aguentar ficar sem beber daquela forma novamente”.
   Não creio ser necessário acrescentar aqui que foi a última vez que saí com ela, talvez pelo rancor que ela tenha adquirido de mim; mais provável pela minha vergonha de olhar para ela novamente.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Madeira diz algo

   Nunca fui de frequentar médicos, como a maior parte dos outros homens; talvez três quintos dos leitores me entendam, afinal de contas eles só nos darão receitas caras que farão a mesma coisa que o tempo fará se deixarmos ele, o tempo, trabalhar um pouco. Evitar exercícios exagerados, friagem, esse tipo de coisa; é uma boa desculpa pra passar tempo em casa lendo um livro ao invés de ter de ir àquela festa em família tediosa que sua sogra planejou. Se nem aos que cuidam do físico eu vou, quanto mais aos da saúde mental, destes que tenho fugido ultimamente. Meu chefe me deu algo que ele chamou de “boa indicação, sem arrependimentos” para me ajudar nos problemas que estava enfrentando em casa, ainda não sei por que fui desabafar logo com o meu empregador. Ele deveria ter se arrependido da mera hipótese de me indicar um psicólogo, não obrigado, ele não resolveria meus problemas. O doutor, no caso da indicação uma doutora, jamais iria entender o que se passa e nunca poderia resolver meu problema, até porque eu era o problema da família e com certeza não iria dizer isso a ela. Se eu não podia nem sequer dizer que eu era o causador de grande parte das discussões familiares, como ela poderia receitar uma solução para o caso? Dispensei no mesmo minuto, não em voz audível, não queria desprezar meu chefe, mas em minha mente Madeira já gritava “cala a boca seu babaca, eu pareço ter cara de que frequento o psicólogo? De onde você tirou essa ideia? Eu só estava tentando criar um assunto, desabafar ou algo assim, não quero que você seja o meu conselheiro pessoal! Eu sei, eu comecei, mas foi um erro, tá legal? Pode parar de falar agora!” e eu realmente acreditava que ele iria perceber as más vibrações que desejavam tapar a boca dele, mas não aconteceu. Eu só ouvi, sorri, agradeci e descartei o papel assim que ele saiu do meu campo de visão.
   Mas havia algo errado em mim, eu tinha noção disso! Acho que foi algum cliente, talvez a benévola vizinha que sempre andava com um vaso novo de plantas nas mãos, aqueles vasinhos pequenos que se podem colocar em cima da geladeira, na verdade eles encaixam em qualquer buraco da casa e por isso nunca há limites para sua aquisição. Enfim, voltando ao conselho, alguém me disse para eu procurar por uma palestra espírita em algum centro. Fui mesmo. Fiquei sentado, é bom ressaltar isso, impacientemente por todos os trinta minutos de conversação etérea que emanava da voz do orador. Obviamente ele não falava pelas cordas vocais, era certo que a alma dele é quem emitia os sons, calmo como a corrente da água, irritante como uma goteira ao lado da cama. Acho que vocês já perceberam que eu sou dado a falas longas e rápidas, não é proposital, fui criado na capital, obrigado a dar indicações de ruas tão rápido quanto a duração do sinal vermelho, não consigo me manter concentrado em diálogos que usam entonações tão longas quanto as avenidas paulistas. Já me disseram que eu daria melhor com os pentecostais, mas prefiro as falas rápidas e com variações de ideias, não costumo repetir sinônimos durante quinze frases seguidas. Quanto a palestra espírita, depois de tentar dormir por três vezes e ser sempre acordado com uma cinquentona que insiste em concordar com o preletor, como se a palestra dele ficasse mais verossímil com suas acentuações de “é assim mesmo” ou “acontece comigo sempre”, tomei por passatempo contar as vezes em que o uso de “nós” e suas variações foram empregadas. Confesso que perdi a conta, mas me ajudou a ouvir alguma coisa do que ele dizia caso alguém perguntasse depois. “Nós devemos”, “nós podemos”, “nós somos”, “nossos antepassados”, “nossa alma”, “nosso corpo”, “nosso mundo”, “nossa geração”, “nossos filhos”. Não sabia se a raça humana fazia parte de uma única entidade invisível e cada um de nós era somente uma de suas facetas, que no caso eu seria a do cético impaciente, ou se aquelas pessoas eram na verdade uma raça alienígena que compartilhava de um único cérebro, movendo todos os corpos numa conspiração hollywoodiana, tantos “nós” fui capaz de ouvir. Fiz uma anotação mental para as frases “somos pessoas de bem” e “somos seres com tendência ao mal”, deixei para analisar depois, mas acabei me esquecendo.
   Enfim, perceberam que não funcionou, certo? Até mesmo eu tinha esperanças, em algum lugar do meu ceticismo matemático, de que haveria algo ali que me ajudasse. Talvez houvesse, mas minha freneticidade não me ajudou muito.  O que posso dizer? Sou apolítico, metropolitano, viciado em café! Tento fazer com que as pessoas a minha volta entendam exatamente toda a minha linha de pensamento antes que possa dizer a minha conclusão. Por exemplo, agora, neste pequeno relato pessoal. Eu pensei primeiro “seria legal mostrar a estes expectadores aleatórios sobre essa coisa de conselhos que não dão certo”. E feito está, três parágrafos insuportáveis de frases destoantes que a maioria de vocês nem chegará a terminar de ler.
   Onde será que deixei aquele papel com o telefone de uma psicóloga, viu? Parece que a indicação era boa.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Beggar's speech

"What are you looking for, dude? We live in this way, right? We don't have home, because all the world is our home. These streets can be cold in winter, but are beautiful in autumn. Do you have any problem with this? I'm not asking for money, I was asking knowledge and you could give me that? No! You just pass through me, denying whatever I would ask to you, and ran over to the corner, looking somewhere to enter. I don't came here to punch or to stole you, I never could do that. I live in the street but I have my principles. I came here to ask you: could you live like me? Could you live all day in the hunting for eat something? Do you have your job? A credit card? So you know you will have food to eat tomorrow instead to go outdoors crying for someone. But not crying without pride, cause we have our! We know about the life and the jobs, but we born for something else, to live like a painting, showing every day the people they have a good life, opposite to ours. If you have any question to do, I will not answer it without my lawyer presence. Have a nice day."

sábado, 7 de maio de 2011

Programas

   O rapaz calçou os chinelos e em um movimento veloz estalou o pescoço. As pontas dos dedos alçaram ao teto, tencionando os braços, esquentando os músculos contra a rigidez matinal. Escolheu na estante um disco, não de sons estridentes, mas que contivesse um certo tom de alegria e agitação, algo para acordar. O ribombar das primeiras pancadas da bateria, seguido de acordes ainda distantes da guitarra elétrica, equalizaram o cérebro do jovem em uma frequência mais ativa. Os cereais flutuaram no pote de leite. Embora o meio-dia avistasse seu ápice, o ainda jovial ser humano tinha a sensação de ter recém saído da noite. Preocupava lhe somente o horário do desejado programa televisivo. Estirou-se sob o sofá, o pote de cereais úmidos ao leite ainda em suas mãos; o controle remoto ativou um misturador de realidades. O televisor rugiu de forma incompreensiva por um milésimo de segundo até ser possível definir os primeiros sons.
   O jornal de intervalo periódico exibiu a chamada inicial, dando continuidade os resumos informativos.
   Um bebê na Rússia, de cujo a pele das pernas sobressaíam trechos do alcorão todas as sextas-feiras, estava recebendo milhares de visitas diárias de fiéis islâmicos, creditando-o como mensageiro divino da paz; debates de caráter liberal, referente a relações homoafetivas, espalhavam-se por todo o país; problemas econômicos no leste europeu, reflexo das adversidades climáticas que assolaram a sociedade rural local; contradições no anúncio da morte de terrorista procurado há anos; guerra civil provoca imigração em massa para país vizinho, tumultuando o governo quanto aos problemas ocasionados por esse êxodo; atriz americana encontrada morta em hotel, provavelmente vítima de suicídio.
   O rapaz ainda mastigava o cereal já amolecido pelo líquido. O polegar toca determinado comando do controle remoto e logo sua visão é fustigada por uma imagem completamente distinta da anterior, uma jovem anunciando a apresentação de mais um episódio da série infantil animada recém-estreada. O dedo toca novamente o controle. Publicidade referente a uma enorme rede de loja de móveis e eletrodomésticos. Novamente o polegar se movimenta, e relaxa ao pousar o controle remoto junto a si no estofado. Acabara de iniciar a série juvenil, repleta de efeitos especiais e personagens estereotipados. Temia ele pelo fim que o roteiro daria ao seu personagem predileto.
   Quanto ao bebê russo, os debates de teor sexual, a economia europeia, o fim de um terrorista, o recebimento de imigrantes, o suicídio da atriz, tudo isto era episódio repetido e que provavelmente seria reprisado na próxima temporada. Onde ele havia deixado mesmo o controle? O som ainda não estava numa altura de provocar emoções.