segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Oitavo Filho - Parte 3

   E mulher não era, como viriam a descobrir – constatar, seria mais adequado, pois a certeza de que a maldição os abateria era aguça – segundo o pronunciamento das parteiras.
    A cria masculina única de Onofre e Maria nasceu e cresceu sobre os olhos cautelosos dos pais. Desde o dia do parto, quando o médico levou junto à face da mãe o pequenino bebê, dona Maria, já não tão nova, espantara-se com a fisionomia da criança; saudável e corada, portava um par de orelhas levemente pontiagudas, o suficiente para alimentar a superstição fanática dos progenitores.
   Foi nomeado de João, nome simples e destoante da prole particularmente feminina da família. João possuía cabelos espessos muito negros, que cresciam aceleradamente. Seus caninos, mesmo os de leite, ao despontarem pela primeira vez, já eram pontiagudos.
   Com o passar do tempo, a criança foi se desenvolvendo e os cuidados na casa redobrados. Dona Maria notou logo como cresciam escuros os pêlos dos braços e pernas do filho. Ela temia as fofocas da vizinhança. Pior que lobisomem, sabemos todos, uma fofoca pode acabar com muitas vidas mais.
   Em cidade pequena, falar de vizinhança é quase a mesma coisa que falar de toda a população. Ou seja, todo o perímetro do pequeno conjunto habitacional mineiro já sabia dos boatos do filho de Onofre e Maria: oitavo filho, amaldiçoado, que Deus salve seus servos! Lobisomem particular agora tinham.
   Para evitar mais falatório e poupar, o pouco que seja, as desgraças de sua família, o casal passou a manter o filho dentro de casa o dia todo. Não iria para a escola e não brincaria na rua. Como medida contra os amigos do casal que visitavam a casa, adotaram o costume de fazer as unhas e cortar os cabelos e os pelos de João diariamente. Quando podiam, lixavam os caninos do pobre garoto.
   Privaram-no também das delícias da carne vermelha, da branca, bem como toda sorte de alimentos que viesse de ser vivo. Vegetariano vigiado dia e noite. Dieta segura propiciada por dona Maria. O garoto não sentiria o sabor de um ser que já foi vivo, fariam de tudo para evitar que João despertasse seus instintos selvagens.
   Tomaram para si um estilo de vida desesperador, como se o próprio demônio morasse junto deles. Trancavam o filho no quarto, situado no porão da casa, precavendo-se de passeios noturnos sobre o luar; luar este que João foi impedido de presenciar desde o dia em que nasceu.
   Doze anos e meio transcorreram dessa rotina fóbica e o derradeiro desfecho já despontava. A maldição, toda a família sabia de cor, mesmo as três filhas que já haviam casado e a primogênita, que fugira com um rapaz há quatro anos, destinava o oitavo filho homem a completar sua transformação licantrópica na primeira sexta-feira de lua cheia que viesse após o décimo terceiro aniversário. A contagem regressiva começou.
   Dona Maria e senhor Onofre apelaram para todas as artimanhas possíveis. Reconsultaram o padre; procuraram o pastor da nova congregação, que viera para a cidade há pouco tempo; aconselharam-se com os idosos; pagaram visita aos ciganos. Mas pouco, ou nada, dava a eles esperança de se safarem do mórbido destino. A cidadela não via o menino jaziam alguns anos, mas todos sabiam de sua presença.
   Por passar tanto tempo em oculto, porém, a idade certa de João foi esquecida pelos moradores locais, de forma que não se encontravam tão apreensivos quanto os pais do amaldiçoado. Faltava somente uma semana para a noite da transformação, mas a população estava mais entretida em preparar-se para receber a festa junina local, principal evento anual.
   Na sexta-feira todos desceram para a praça central, decorada com apetrechos típicos e com barracas de comida dispostas por todos os lados. As filhas do senhor Onofre desejavam mais do que tudo ir festejar, mas, pela distancia percorrida da casa, em meio à pequena fazenda, até o centro da cidade, não poderiam ir sozinhas.
   Ora, se João não visse o luar, nada aconteceria e, afinal de contas, o garoto estava muito fraco com sua precária alimentação. Ele era extremamente quieto e nunca, em todos esses anos, tentara sair de seu quarto durante a noite. O casal certificou-se de que João havia adormecido e pediram às filhas que se certificassem de que todas as janelas e portas estavam trancadas. Obviamente que, na euforia de partir logo, a filha mais nova não constatou a janela do porão aberta, e assim ela ficou.
   Partiram então; as filhas despreocupadas, os pais apreensivos.

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