segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Oitavo Filho - Parte 4

   A festa junina local era tão movimentada que as guloseimas eram preparadas na hora para atender aos festejadores. O churrasco, atração principal, levantava colunas de fumaça por toda a redondeza.
   João tinha, sim, um sono profundo, mas todos os anos, na noite de festa junina, era acordado por aquele cheiro tão distinto de carne. Pela vontade de apreciar aquela comida, ele sempre se levantava e ficava o mais próximo da janela, posta tão alta, para sentir o delicioso cheiro do churrasco. Sentia vontade incontrolável de ser uma criança normal e poder brincar e comer junto dos outros.
   Sentou na escada do porão e começou a chorar. Após alguns minutos do pueril pranto, ele levantou a cabeça e notou que a janela pela qual ventilava o ar do porão, a que dava para os fundos da casa, ficou aberta. Pelo costume do cativeiro, não havia percebido brecha tão grande! Sua chance de saber como eram os festejos e a comida de sua gente finalmente chegou!
   Empilhou algumas caixas e brinquedos por cima da cama, que fora arrastada até embaixo da janela. Escalou tudo com dificuldade e esgueirou-se em liberdade para fora da casa. Respirou profundamente o ar fresco noturno e apreciou a formosa lua, vigorosa em sua fase cheia.
   Correu a seguir em direção à praça, sempre guiado pelo saboroso cheiro de carne.
   Chegando ao centro da cidade, admirado em ver tanta gente em um único lugar (lembrava de ter visto muita gente reunida ao seu lado somente quando alguns parentes de sua mãe vieram visitá-la, anos antes), infiltrou-se em meio à multidão e pegou a fila para provar a comida proibida.
   Na sua vez, o churrasqueiro questionou:
   - Bem passada ou mal passada?
   Apontou, sem pronunciar qualquer palavra, para um espetinho de carne extremamente mal passado, com coloração muito avermelhada. Aquele pedaço atraíra sua atenção mais do que as cores escuras das carnes tostadas. Ao descobrir comida nova, sempre tendemos às aparências.
   Pegou o espetinho na mão e, assim que saiu da fila, abocanhou o maior pedaço que pode, fazendo escorrer sangue por todo o seu queixo. Mas, pelo estado, era extremamente difícil arrancar um pedaço daquela carne semi-crua; seus caninos lixados também não ajudavam.
   Ficou ali, naquele quadro: a boca coberta de sangue e os olhos esbugalhados, sem saber direito o que fazer. Foi nesta hora que dona Maria, ao lado da sexta filha, viu seu filho em meio à festa como a quem vê um morto vivo. Sua cabeça foi alardeada com pensamentos sobre a força brutal que se apossara da criança, fazendo com que ele estourasse as portas e trancas a procura de carne fresca.
   Fez a única coisa que lhe era cabível. Gritou, e gritou como só as mulheres sabem fazer, de modo que a música foi cortada e todos os rostos se voltaram em sua direção.
   - O lobisomem! Ele se transformou no lobisomem!
   E gritou mais ainda, correndo como se o diabo tivesse vindo buscá-la. O pânico dormente em todos acordou disposto. A lenda do menino-lobo que nascera entre eles era famosa. Saber que ele havia finalmente se transformado e estava ali, atacando alguém, causou caos.
   A pequena cidade mineira entendeu o significado da expressão “foi um Deus nos acuda”. As pessoas corriam para todas as direções. Atropelavam tudo o que estava no caminho. Churrasqueira tombou e ateou fogo. Idosa caiu enfartada. Pai de família carregava cinco crianças ao mesmo tempo. Todo mundo se desesperou, inclusive João que, não entendendo muito bem os motivos, começou a correr. E havia alguém de desconfiar do pequeno garoto, de cabelos bem feitos e roupas simples?
   Os mais corajosos correram para pegar uma espingarda e miravam no que podiam, querendo mostrar que enfrentariam a fera, custe o que custar. Mataram, por engano, alguns cachorros na empreita, o que só serviu para assustar ainda mais os desesperados.
   Começaram a dizer que já tinham atirado dez balas na criatura e ela não caia. Foi aí que até os bravos heróis desistiram das armas e correram para proteger suas famílias. Na confusão, até padre Tinho fez uma reza e fugiu. A cidade ficou vazia.
   O lugar ficou taxado de amaldiçoado e poucos voltaram para pegar algum pertence. O medo de o lobisomem atacar, mesmo de dia, manteve as pessoas afastadas o mais longe possível da cidadezinha. Foi o maior êxodo que se ouvira falar em todo o interior de Minas. Cada um pra um lado, procurando qualquer local onde tivessem um conhecido que os poderia receber.

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