O pastor da congregação local mudara-se para a cidade por volta de dois meses atrás, fundando o primeiro templo protestante do lugar. Atendia aos poucos fiéis que conseguira converter e não dava muita atenção para os boatos supersticiosos dos moradores. Sabia que era coisa típica do povo rural.
Mesmo após toda a confusão ele não deixara sua convicção de que a confusão do lobisomem não tinha passado de um mal entendido.
Sabia ele também que, mesmo em meio ao caos, o Senhor faz coisas bonitas com seus filhos. Na peregrinação para fora da cidade, da qual o pastor foi acompanhado por sua família e pelos fiéis da congregação, ele encontrou uma criança que corria sozinha, sem pais ou amigos.
Chamou-o, comovido pela solidão da criança e, agachando para falar-lhe, perguntou seu nome.
- João, senhor. – O garoto respondeu de forma rápida e tímida.
- Onde estão seus pais, João?
- Não sei não, senhor. Não os vejo desde quando começamos a correr, ontem à noite. Acho que eles foram para longe de mim, senhor. Nunca me quiseram, acredito eu.
- Ora, não fale uma coisa destas! Eles devem te amar muito e estão, neste exato momento, preocupados com você.
- Não estão não, senhor. Eles me trancavam todos os dias no porão e evitavam dar para mim as mesmas comidas gostosas que davam às minhas irmãs. Na verdade, eu estava preso até ontem e consegui escapar sem que me vissem.
Os olhos do pastor se encheram de lágrimas. Agradeceu a Deus por ter colocado exatamente ele, seu servo, no caminho daquela pobre criança. Convidou-o para ficar com ele, oferecendo-lhe cuidados e comida necessária.
João agradeceu e o acompanhou por todo o caminho, sendo sempre tratado e protegido, tanto pelo pastor, quanto por sua esposa. Descobriu como era gostoso brincar, e passava o dia durante a jornada se divertindo com os filhos do gentil casal.
Chegaram, após quatro dias de caminhada, em uma cidade mais habitada do que a morada anterior; município não tão rural e com muitas lojinhas e casas grudadas umas nas outras.
Hospedaram-se na casa de um antigo conhecido do pastor, ovelha sua em outras épocas, e, pelo que João ouvira, ficariam por lá alguns dias.
No primeiro jantar que tiveram, reunidos junto à mesa, a esposa do pastor e a dona da casa prepararam uma deliciosa carne bovina, muito cheirosa e decorada. Ao dispô-la sobre o tampo, os olhos de João brilharam. O cheiro, desde quando a preparavam, fez com que ele tivesse desejos de devorar aquele alimento incessantemente.
A criança abandonada não piscava um segundo sequer, fitando o pedaço de boi posto ao seu alcance. Ele salivava e a baba escorria pelos cantos da boca. Suas mãos tremiam. Finalmente sentiria o sabor daquela carne tão almejada.
Na verdade, ele já deduzira o sabor em sua mente. Seu desejo era incontrolável. Se demorassem mais um minuto para servir sua fatia, ele pularia por sobre a mesa e abocanharia ali mesmo sua refeição.
Seus desejos eram animalescos. Talvez pelo anseio de apreciar um alimento da qual fora privado por toda sua vida; talvez o motivo fosse muito mais sombrio.
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